sábado, 27 de setembro de 2008

O Ocidente e o Império do Meio em 2008 (3)

Pelo seu interesse transcrevemos o terceiro e último artigo desta série dado à estampa no Público de 10 de Setembro de 2008.




O poder militar chinês: a ameaça futura

Pedro Jordão - 20080910

A China planeia a muito longo prazo. É legítimo que nos interroguemos sobre os reais objectivos do seu esforço militarDiversos países, designadamente os Estados Unidos, sentem um paranóico temor perante o crescente poderio militar da China. Embora em matéria de segurança todos os cenários devam ser previstos, são pouco plausíveis as visões mais pessimistas no que se refere à China.Logicamente, seria imprudente desvalorizar militarmente este país. A China é o país mais populoso do mundo, possui as maiores forças armadas, com 2,3 milhões de efectivos, é uma potência nuclear e desenvolve um consistente processo de modernização das suas capacidades de combate, inclusive em domínios de sofisticada tecnologia da próxima geração.

É iniludível a convergência entre a ascensão desta força militar e a transformação da China numa futura superpotência económica, de que decorrerá um grande peso político global. A China pensa e planeia a muito longo prazo. É legítimo que nos interroguemos sobre os reais objectivos de todo este esforço militar.

Os norte-americanos assustam-se pelo facto de o orçamento militar chinês ter crescido 17,8 por cento em 2007 e 17,6 por cento em 2008. Mas devemos manter a noção das proporções. Em valores absolutos, o orçamento de defesa dos Estados Unidos é nove vezes superior ao da China e o poder militar norte-americano tem já um avanço gigantesco e crescente relativamente a qualquer outro país ou à Europa. Os EUA não só possuem uma enorme superioridade como também desenvolvem já novas gerações de armas e tecnologias que lhes assegurarão uma supremacia militar durante muitas décadas. O orçamento de investigação e desenvolvimento militar dos EUA é superior a todo o orçamento da defesa da Alemanha. Nem a Europa nem a China terão uma capacidade comparável num longuíssimo horizonte temporal.

A China será a grande potência militar da Ásia e terá capacidade para intervir noutras regiões do mundo, inclusive, se necessário, para proteger as suas fontes e rotas de abastecimento de petróleo, alimentos e matérias-primas essenciais. A forte aposta na capacidade naval tem esses propósitos mas também o de ser um contrapoder à influência naval norte-americana na região. A China possui mísseis balísticos intercontinentais, designadamente o DF-31, que podem atingir território europeu e norte-americano.

A modernização chinesa privilegia os submarinos avançados, os aviões não-tripulados, os mísseis ar-terra de alta precisão, as comunicações militares de longa distância, os mísseis anti-satélite e a capacidade de rápido ataque da Força Aérea a objectivos longínquos. Mas, inteligentemente, a China aposta em novas tecnologias não-convencionais que poderão revelar-se cruciais em futuros conflitos, sendo esse o caso da capacidade de guerra electrónica e informática e de tecnologias como o impulso electromagnético (que poderia ter um efeito determinante na fase inicial de um conflito com Taiwan).

As capacidades chinesas de ciberguerra são um exemplo da perspicácia com que este país antecipa metodologias vitais em conflitos do futuro, planeando atingir a superioridade de guerra electrónica em 2050. A China desenvolveu modelos de ataque informático a frotas de porta-aviões dos Estados Unidos. Ciberataques ensaiados a partir da China têm sido quase constantes, embora se negue o envolvimento oficial. Desde 2005 foram registadas no Pentágono 79.000 tentativas de intromissão informática, das quais 1300 com algum grau de sucesso. Um ataque conseguiu fechar parte do sistema de computadores do gabinete do próprio secretário da Defesa.Toda esta preparação militar de vanguarda pode ser perigosa ou benigna. Ter armas não é necessariamente um perigo. Um indivíduo pacífico com um míssil é menos perigoso que um psicopata com um punhal. O que verdadeiramente define a perigosidade de uma estrutura militar é a mente de quem a controla. É imperioso avaliar o que motiva os chineses.

A China é uma civilização com 4 mil anos que geralmente deteve uma superioridade perante o resto do mundo nos planos científico, tecnológico e cultural. Habituou-se a olhar os outros povos como bárbaros. Em lugar de tentar controlar o mundo "bárbaro" a China optou por isolar-se dele. A famosa muralha traduz essa postura. Mas nos últimos 170 anos a China sofreu duras derrotas, ocupações e humilhações. Na verdade, o mundo não está habituado a agressões da China, mas ela sofreu agressões estrangeiras.

A China está determinada a exorcizar aquelas humilhações, a recuperar o estatuto de grande potência e a inspirar respeito e dignidade. As mentalidades pacificaram-se, não existe uma postura internacional agressiva, os contenciosos com os vizinhos estão a ser resolvidos e mesmo com Taiwan o desanuviamento progrediu imenso.

O poder militar chinês será muito mais provavelmente defensivo do que aventureiro. A China não deseja tutelar o mundo. Simplesmente não aceita que o mundo a tutele.

Presidente do CINT (ped.jordao@gmail.com)

Último de uma série de três artigos

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O Ocidente e o Império do Meio em 2008 (2)

Na continuação dos artigos de opinião no Público acerca deste tema, foi publicado em 8 de Setembro de 2008, o segundo artigo que se transcreve:




Como a China mudará a economia global

Pedro Jordão - 20080908

Os 29 milhões de empresas privadas representam mais de dois terços da economia chinesa

Aascensão da economia chinesa impressiona pelo enorme crescimento ao longo de muitos anos consecutivos, mas também pela transformação qualitativa, que é uma das mais vibrantes experiências económicas da história. Este processo ocorre num país com um quinto da população mundial, o que torna inevitáveis as ondas de choque na economia global.

Esta dinâmica da China insere-se na tendência mais geral da emergência económica dos países em desenvolvimento. Esse vasto conjunto de economias emergentes, apesar da conjuntura de crise internacional, deverá, em 2008, crescer economicamente a um ritmo médio quatro vezes superior ao da zona euro. Neste ano a economia da China deverá crescer 9,8 por cento (quase seis vezes o ritmo da zona euro) e a da Índia 7,7 por cento.

O arranque económico da China, com as reformas iniciadas em 1978, surgiu num país de economia agrícola com uma indústria atrasada. A falta de gestão moderna, mão-de-obra especializada, recursos financeiros, tecnologia e experiência internacional impôs um modelo de crescimento assente em indústrias de baixo valor acrescentado e em mão-de-obra pouco qualificada e intensiva.Mas os chineses aprendem depressa. Nas décadas seguintes a transformação da economia foi inimaginável. As empresas chinesas elevaram enormemente o seu nível tecnológico e muitas já lideram sofisticados segmentos de mercado internacionais. No início, a economia era completamente controlada pelas empresas estatais, mas agora os 29 milhões de empresas privadas representam mais de dois terços da economia. Mesmo as empresas estatais, no passado disfuncionais, tornaram-se agora rentáveis no seu conjunto, com lucros que nos últimos três anos cresceram 223 por cento.

Os lucros das empresas conferiram-lhes capacidade financeira para adquirir a mais avançada tecnologia do mundo. As receitas fiscais numa economia expansiva permitiram financiar fortemente a educação, a ciência, a defesa, infra-estruturas e programas sociais. A economia e o país mudaram extraordinariamente.

A China possui agora algumas das maiores empresas e alguns dos maiores bancos do mundo. A Lenovo é o segundo maior produtor mundial de PC e adquiriu toda a lendária divisão de computadores pessoais da IBM. A China é o país do mundo com o maior número de utilizadores da Internet e o número de assinantes de telemóveis é muito superior a toda a população da Europa. Em 2007 o número de registos de patentes chinesas aumentou 20 por cento, suplantando os Estados Unidos e o Japão. Em 2003 a China passou a exportar mais tecnologias da informação do que todos os países da União Europeia juntos. Em 2004 superou os Estados Unidos e tornou-se no maior exportador mundial dessas tecnologias.

Na próxima década os chineses emergirão como uma potência nos serviços de alta gama, captando uma quota crescente do mercado mundial de offshoring de serviços.

Este contexto induziu a maior prosperidade dos cidadãos em geral e o consumo interno cresce explosivamente. A classe média de 300 milhões de habitantes é ainda minoritária mas é numericamente idêntica a toda a população dos Estados Unidos. Este mercado de consumo passou de irrelevante para o nível de um mercado gigantesco, no qual quase todas as empresas globais competem para se implantar. Em 2007 venderam-se 8,3 milhões de veículos e 40 milhões de turistas chineses viajaram no estrangeiro. Nos produtos de luxo a China é já importante, sendo o maior mercado de crescimento para grandes marcas globais enquanto absorve 15 por cento da produção da Rolls Royce.

As assimetrias de desenvolvimento são acentuadas, nomeadamente entre zonas rurais e urbanas. Todos beneficiam com as reformas, mas uns mais rapidamente que outros. A China retirou da pobreza centenas de milhões de cidadãos, o que configura o maior sucesso de erradicação de pobreza na história mundial.

As empresas chinesas passaram a ser fortes investidores no resto do mundo, tendência que acelerará imenso nos próximos anos, inclusive com aquisições aparatosas na Europa já em preparação. Nos últimos cinco anos o número de aquisições de empresas no estrangeiro aumentou 10 vezes.

Embora o PIB per capita seja ainda baixo, a economia da China é (em ppp) já a segunda maior do mundo e previsivelmente ultrapassará a norte-americana nas próximas décadas.

Mas esta ascensão da China é apenas a ponta de um iceberg que é a imparável competição e o consumo das economias emergentes. O que nas próximas décadas alterará dramaticamente o modus operandi e as linhas de força da economia mundial não é apenas a China mas esse conjunto de países. O mundo da economia, da política e do poder, como o conhecemos no séc. XX, está a desaparecer parcialmente.

Torna-se indispensável a inteligência estratégica de nos reinventarmos em tempo útil.

Presidente do CINT (ped.jordao@gmail.com).

Segundo de uma série de três artigos

domingo, 7 de setembro de 2008

O Ocidente e o Império do Meio em 2008

Transcreve-se o artigo de opinião publicado no Público de 7 de Setembro de 2008.




China: mitos e impacto global

Pedro Jordão - 20080907

Quem imagina a economia chinesa assente em baixa tecnologia e mão-de-obra primitiva está atrasado 15 anos

Durante décadas o Ocidente exortou a China a abrir-se e a integrar o comércio e a política globais. Mas quando a China o fez o Ocidente apavorou-se com o impacto dessa abertura. A miopia estratégica ocidental é pungente. O que poderia esperar-se quando um país que contém mais de um quinto da humanidade se integra na economia e na sociedade mundiais? O impacto global da China é profundo. E irreversível.Desde 1990 as exportações da China cresceram 17 vezes e o seu PIB quintuplicou. Os excedentes comerciais criam gigantescas reservas de moeda estrangeira. Os lucros das empresas geram sólidas receitas fiscais. O investimento externo tem entrado a um ritmo de mil milhões de euros por semana.

As remunerações dos trabalhadores elevam-se. O crescente poder de compra criou uma classe média de algumas centenas de milhões de chineses. A China era essencialmente um produtor mas agora é também um mercado consumidor, inclusive para produtos de luxo. Os cosméticos são já um mercado de 15 mil milhões de dólares.

A liquidez nacional permite o financiamento de reformas a um ritmo alucinante, desde a ciência às infra-estruturas e às condições sociais. Só em 2005 a China comprou 215 aviões comerciais. Até 2020 serão construídos mais 55 aeroportos. Há 200 milhões de passageiros aéreos internos por ano. Dentro de três anos a China produzirá anualmente mais doutorados em tecnologias que os Estados Unidos. Os utilizadores da Internet são já 260 milhões e há 660 milhões de assinantes de telemóveis. Em 2008 o orçamento da educação aumentou 45 por cento.

Quem imagina a economia chinesa assente em baixa tecnologia e mão-de-obra primitiva está atrasado 15 anos. A China detém tecnologia de vanguarda e é já o maior exportador mundial de tecnologias da informação.

Apesar dos êxitos, os problemas são ainda sensíveis. Embora toda a população tenha beneficiado com as reformas, as assimetrias são acentuadas, entre zonas rurais e urbanas e no seio destas. A luta contra a pobreza na China é o ex-líbris da ONU. Apesar de persistirem muitos milhões de pobres, centenas de milhões de chineses foram retirados da pobreza. Enquanto os Objectivos do Milénio da ONU para a erradicação da pobreza não serão atingidos pelo mundo no prazo estabelecido, 2015, a China ultrapassou-os com 14 anos de antecedência, o que é a maior conquista na luta contra a pobreza na história da humanidade.

As condições sociais melhoraram mas muito falta ainda. O desenvolvimento tem consequências positivas e negativas, incluindo poluição. A China introduz ambiciosos programas ambientais, é já um dos líderes mundiais em tecnologias de energias alternativas e aposta numa nova geração de automóveis híbridos.

A gestão urbana é um desafio crucial. Na Europa existem 35 cidades com mais de 1 milhão de habitantes, mas na China esse número será de 219 em 2025 e em 2030 mil milhões viverão em cidades.

As mentalidades evoluíram radicalmente mas subsistem diferenças geracionais entre alguns que foram formatados no regime comunista e os que se estruturaram já na fase de abertura. Visões de vanguarda coexistem com casos de inabilidade e de atraso conceptual, mas a tendência predominante é de modernidade.

O Ocidente justamente insiste com a China para que intensifique a democratização. Mas é necessário manter-se a autoridade moral e a justiça na avaliação dos progressos já produzidos.

A democracia chinesa carece de maturação. Mas estão os europeus conscientes de que na Europa, perante um tratado que afectaria a vida de gerações, foi montado um antidemocrático complot para impedir que os cidadãos europeus decidissem o seu futuro? Esquece-se que um presidente europeu considerou um perigo consultar-se os cidadãos e que, depois, os políticos poderiam ter que "corrigir" essa decisão democrática?

A China deve respeitar mais os direitos humanos. Mas países pioneiros da integração europeia mantiveram a pena de morte (e aplicaram-na) ainda durante décadas e um membro da zona euro aboliu-a formalmente há apenas quatro anos.

Os europeus condenam os baixos salários chineses. Mas os salários aumentam com a prosperidade. O custo da mão-de-obra na Noruega é cinco vezes superior ao de Portugal, país que um norueguês deveria considerar como local atrasado cujos cidadãos são explorados e auferem misérias.

Num país que durante milénios deteve uma superioridade científica, cultural e tecnológica, as humilhações sofridas desde o séc. XIX induzem o anseio de reassumir uma dignidade global.

A China e países como a Índia induzirão mudanças tectónicas na dinâmica internacional. O mundo não voltará a ser o mesmo. E este é apenas o início desse processo.

Presidente do CINT (ped.jordao@gmail.com). Primeiro de uma série de três artigos

sábado, 6 de setembro de 2008

A Física e o Humor

Do Blog DE RERUM NATURA , a 6 de Setembro de 2008, transcreve-se:



Não sei se os caros leitores já repararam que o "Inimigo Público", o jornal das Produções Fictícias incluído no "Público" às sextas-feiras, tem publicado o melhor humor científico português, isto é, o melhor humor usando temas ou a linguagem da ciência. Quem o assina é David Marçal, um jovem cientista a terminar o doutoramento em Química e que já trabalhou como jornalista do "Público" no âmbito do programa "Cientistas na Redacção". Eis um exemplo do seu humor científico tirado do "Inimigo Público" de ontem (motivado pelo recente assalto à caixa multibanco do Tribunal de Cascais, onde o alarme não soou e as câmaras não funcionaram):

-----------------------------------------------------------------------

"MECÂNICA QUÂNTICA SOBRE... O DESAPARECIMENTO DA CAIXA MULTIBANCO DO TRIBUNAL DE CASCAIS

Segundo a mecânica quântica, quando uma partícula faz uma trajectória entre o ponto A e o ponto B, não se sabe muito bem o que aconteceu no caminho. Mas, segundo a mecânica quântica, isso também não interessa. Aliás, de acordo com o princípio de incerteza de Heisenberg, não sabemos muito bem onde está a caixa multibanco, sequer. Ou sabemos onde está ou a velocidade com que se desloca. Assim, a caixa multibanco pode perfeitamente num momento estar dentro do tribunal e no seguinte integrada na colecção Berardo de arte moderna, de onde já não sai por menos de dois milhões de euros....

CÂMARAS DE VIGILÂNCIA E ASSALTOS

De acordo com a mecânica quântica, quando observamos um sistema estamos a perturbá-lo e, logo, a influenciá-lo. Assim, quando se colocam câmaras de vigilância nos postos de gasolina, as câmaras estão a alterar a realidade. Podemos perguntar se os assaltos ocorreriam se não estivessem lá as câmaras para os ver."

David Marçal

Portugal e os Contratos Públicos

Publicado no Público de 6 de Setembro de 2008 da autoria de Manuel Carvalho, na sua página de Opinião, a seguir transcrevemos o artigo dada a sua mais de actualidade e descrição de uma realidade actual e que não se pretendia futura:




sábado, 6 de Setembro de 2008

A medida dos contratos públicos

É nas grandes empresas públicas que mais contratos suspeitos se fazem, sob a protecção do profissionalismo e a cumplicidade do labirinto burocrático de um Estado centralizado

Dezenas de inquéritos, sindicâncias, processos judiciais e inquéritos parlamentares, milhares de denúncias e protestos não bastam para erradicar da administração pública portuguesa as suspeitas de conluio, nepotismo e corrupção. Oito anos depois do escândalo que determinou a extinção de um serviço histórico do país, a Junta Autónoma das Estradas, ainda há altos quadros da Estradas de Portugal a manterem relações suspeitas com empresas de consultadoria que prestam serviços em áreas sensíveis como a arqueologia e o ambiente. No país onde o jeitinho é tradição, a relativização de princípios norma e o compadrio tradição, enraizou-se uma cultura de tolerância para com a pequena corrupção que acaba por favorecer a arbitrariedade, a concorrência desleal e a ilegalidade nos grandes negócios. Com este padrão de comportamento, é normal que o número de casos de compadrio e corrupção seja maior e mais facilmente detectado nas instâncias da administração pública com maior exposição a empreiteiros e consultores, como é o caso das autarquias. Mas é nas grandes empresas públicas que mais contratos suspeitos se fazem, sob a protecção do profissionalismo e a cumplicidade do labirinto burocrático de um Estado centralizado.

Percebe-se porque é que João Cravinho se converteu num dos principais arautos do combate à corrupção em Portugal. O tempo que passou no Ministério das Obras Públicas foi suficiente para ficar com uma ideia do que é a dimensão da ilicitude nos contratos entre o Estado e os privados. Cravinho mandou fechar a JAE por acreditar que aquele serviço era insusceptível de regeneração, mas a sua ousadia não bastaria nunca para evitar que a linha ténue e perigosa que separa o negócio transparente do favor e do nepotismo se rompesse em definitivo. A investigação do jornalista José António Cerejo que publicamos nesta edição tanto pode indiciar práticas generalizadas como um único foco isolado, mas serve para tornar claro que o pântano está ainda longe de ser drenado.

O caso de altos quadros da Estradas de Portugal com poder para decidir contratos em favor de empresas nas quais, directa ou indirectamente, têm interesse tem também o mérito de nos chamar a atenção para um fenómeno recente e potencialmente perigoso: o da proliferação dos estudos. Olhando o passado recente, constata-se que o investimento da administração pública em empresas de consultadoria é enorme e está a crescer: no Orçamento do Estado do ano em curso estavam previstos 190 milhões de euros em estudos; em 2006 foram efectivamente gastos 77 milhões de euros; só para justificar a opção pela Ota, a Naer terá gasto aproximadamente 40 milhões.

Além de deixar em aberto a questão de se saber porque é que muitas destas consultas não são feitas através dos recursos internos, o que esta onda põe em causa é a transparência com que são adjudicados e a qualidade intrínseca das suas conclusões. Um parecer recente do Tribunal de Contas tinha já alertado para o drama da primeira questão, ao dizer que a Estradas de Portugal tinha subscrito contratos de dois milhões de euros com consultoras sem qualquer concurso público. Depois, no que à segunda questão diz respeito, vale a pena recordar alguns dos erros trágicos das obras públicas, como o túnel do Metro de Lisboa ou as obras de modernização da Linha do Norte da CP, para se questionar a valia técnica de certos pareceres.

Sem uma maior vigilância e controlo por parte dos gestores públicos e os titulares dos cargos políticos na esfera de contacto entre o Estado e os privados jamais se acabará com negócios como o que faz hoje a manchete do PÚBLICO. Mas enquanto o Governo continuar a distribuir estudos como um maná, haverá sempre novas possibilidades de formar empresas com testas-de-ferro que hão-de ganhar os concursos decididos pelos seus manipuladores.

Teorias estáticas em Portugal

Em Portugal sucede que, infelizmente, a maioria dos políticos e outras classes gravitantes nos mesmos meios têm pontos de visão muito limitados.

Face a essa circunstância a única medida que conseguem imaginar é a medida limitativa de que ninguém seja melhor do que o existente e assim a mediocridade não será evidente.

A mediocridade só se torna evidente se à sua volta surgirem aspectos superiores, caso contrário se ela apenas estiver rodeada de iguais ou menores ela será sem dúvida a melhor.

A um passo de uma entrevista, José Morais afirma acerca do construtivismo no Brasil e igualmente em Portugal, o que a seguir se transcreve:



"(...) No Brasil há uma espécie de imperialismo de uma corrente que se chama construtivista e que tem pouco conhecimento científico. Na verdade, se funda em teorias que foram importantes numa época, mas que atualmente perderam a importância porque o trabalho experimental mostrou que na realidade não tem essa importância que se julgava. Eu acredito nos fatos, nos dados experimentais quando são bem construídos, e portanto, bem analisados. Eu desconfio das afirmações baseadas em impressões e intuição. Todas as nossas intuições devem passar por um exame experimental. A partir de uma hipótese, criamos uma situação que vai nos permitir dizer se a hipótese é boa ou não. A psicolingüística, atualmente se desenvolveu muito, justamente porque ela seguiu esse método científico. E os resultados disponíveis permitem fazer pensar que essa corrente do construtivismo que é baseada nas idéias do Piaget – que foi um grande psicólogo do desenvolvimento, mas trabalhou em uma outra época e as coisas não param, atualmente não tem base científica - aquilo que dizemos hoje, provavelmente, será dito diferente ou até melhor no futuro, ou quem sabe até desdito."

Portugal e Delinquentes Juvenis

Numa sociedade em que as famílias quase não têm tempo para a convivência, pelo menos aquela que seria muito conveniente a com os filhos, estão agora a tornar-se evidentes as consequências.

Temos que considerar que um jovem casal, que constitui a sua vida familiar e que tem a felicidade de encontrar emprego para os seus membros, tal significa que o seu dia a dia, especialmente nas zonas metropolitanas, iniciar-se-à bem cedo na manhã a deslocarem-se para os respectivos locais de trabalho, onde irão permanecer a maior parte do dia.

Ao final do dia, após a respectiva jornada no emprego ainda se apresenta pela frente a longa viagem de regresso que os trará de novo ao convívio no lar já no início da noite.

Dado que no dia seguinte a rotina repetir-se-à resta apenas aproveitar as poucas horas que sobram para algumas tarefas caseiras inadiáveis e o descanso preparatório para a próxima jornada.

Este panorama altera-se um pouco com o aparecimento dos filhos, aumentando-se a rotina com as entregas matinais nos infantários e similares e correspondente recolha vespertina.

Que tempo sobra nos dias úteis para o convívio e educação dos descendentes ?

Pouco ou nenhum, pois após a chegada a casa é hora da última higiene, jantar e dormir.

Será que o sábado, domingo, feriado conseguirão colmatar a falta dos dias úteis ?

Dificilmente e o resultado é que o filho fará honrosamente as seguintes licenciaturas inducacionais:

- a do infantário;

- a da pré-primária;

- a da primária;

- a do básico;

- a do secundário;

- a da universidade.

E digo fará, porque nada nos garante que consiga cumprir todo este panorama de instrução (inducação).

E aonde entra aqui a EDUCAÇÃO ?

A Educação como regras de convivência em sociedade não terá muitas oportunidades face ao panorama já descrito, daí que o jovem infante irá certamente desviar-se dessas regras que até não teve oportunidade de as receber e assimilar, irá certamente adoptar outras regras oportunísticas com as quais terá contacto.

Resultado: o delinquente de palmo e meio, exercendo essa actividade impunemente e com poucas hipóteses de recuperação porque o próprio sistema está esgotado em meios para absorver o elevado número de transgressores, e também esgotado na procura de soluções mais efectivas consentaneas com a evolução que a própria sociedade teve.

Os pais esses, infelizmente, já perderam a batalha há muito e já não são solução. E perderam uma batalha na necessidade de vencer uma outra guerra, diária, que lhes permite ter meios de subsistência para si e na melhor das hipóteses para os seus.

A agora "nova" ideia de colocar em casa, com uma pulseira electrónica, o jovem delinquente teria alguma hipótese ténue de funcionar se, e só se, os pais estivessem durante o dia em casa.

Ora, durante o dia, eles estão no emprego!

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Foi a peste que alterou o clima ?

Num artigo acabado de ser publicado na revista NEWSCIENTIST é exposta uma teoria que demonstra que as diferentes eras de gelo, períodos de forte arrefecimento climático, que atravessaram os milénios mais próximos da civilização humana, poderão ter sido causados por fortes movimentos demográficos, ocasionados por pestes, que levando a uma forte redução da actividade agrícola, conduzem a alterações do clima.

Caso os factos o provem, teriamos que a peste negra ao reduzir drásticamente a actividade agrícola conduziria a uma alteração climática importante, a pequena idade do gelo, ao invés da actual teoria que atribui aos efeitos da alteração do clima o aparecimento da peste.

Tratar-se-ia de uma inversão total dos acontecimentos.

Mais desenvolvimento em: www.newscientist.com



A Chilling Tale

Did ancient plagues and pestilence that killed millions of people also alter the planet's climate ?

Slight dips in the level of carbon dioxide in the atmosphere over the past 2000 years are usually put down to natural causes, such as lower emissions from vulcanoes. But when human populations were decimated by disease, large areas of farmland would have been abandoned to nature. As florests reclaimed the land, huge quantities of CO2 would have been sucked out of the atmosphere.

Ruddiman has shown that the timing of one of the larger dips in CO2 matches a series of plagues that peaked around AD 540. Another coincides with the "black death" of the 14th century. In both cases Europe's population may have fallen by a third or more. Worse still was the effect of European settlers bringing smallpox and other diseases to the Americas, causing populations to fall by as much as 90 per cent. This coincides with a relative cool period known as the "little ice age".

Historians have suggested that the little ice age caused famine, disease and depopulation - but was disease the trigger for the little ice age, rather than the upshot?


Barco a energia solar (projecto algarvio)

Pelo seu interesse na aplicação de energias alternativas às energias fósseis, transcreve-se a notícia publicada pelo jornal "O Algarve":




02
Set 08
Barco ecológico algarvio passa nos testes de navegabilidade

Os primeiros testes de navegabilidade da primeira embarcação do país movida a energia solar foram realizadas esta semana na Ria Formosa e as garantias de segurança estão garantidas, disse hoje fonte oficial.

O barco ecológico que não precisa de combustível foi na segunda-feira à tarde alvo de testes de navegabilidade durante duas horas na Ria Formosa, junto a Faro, e segundo informações pela Autoridade Marítima do Sul "oferece toda a segurança equivalente a uma outra qualquer embarcação".

"A não emissão de gases poluentes torna o passeio da embarcação mais amigo do ambiente e menos ruidoso", revelou Reis Ágoas, comandante da Capitania de Faro, reconhecendo as vantagens daquela embarcação que navega silenciosamente e não polui o meio ambiente.

O «Alvor Flor do Sol», foi assim baptizado, já foi levado para o estaleiro de Portimão para ser registado e seguirá depois para Alvor, onde servirá para fazer passeios marítimos na costa portuguesa.

Os proprietários do barco, um casal luso-irlandês que detém a empresa «Alvor Boat Trips», pretendem com esta embarcação realizar passeios turísticos a oito nós de velocidade (cerca de 15 quilómetros/hora) entre Alvor, Portimão e Lagos, passando pelas praias algarvias do Vau, Três Irmãos, Rocha, Meia Praia e D. Ana.

Com 11 metros de comprimento e com uma lotação de 14 pessoas, a embarcação amiga do ambiente foi construída desde o natal passado num estaleiro naval de Faro, com sede no lugar de Mar e Guerra, no meio de estufas e pomares de citrinos e o custo da obra ronda os 140 mil euros.

A divulgação do barco ecológico vai ser feita nos hotéis algarvios do grupo Pestana e na Internet e há contactos com turistas irlandeses interessados em experimentar esta aventura, conta o futuro dono do protótipo, Luís Lourenço.

O autor do projecto, Jorge Severino, "pai" das cerca de 300 embarcações da marca «Tridente» que flutuam na doca de Faro e na Escola Naval da Praia de Faro, acredita que o único futuro para as embarcações marítimo-turísticas são o motor eléctrico-solar.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Cultura Portuguesa

Por vários motivos os textos de Eduardo Lourenço merecem uma leitura sempre atenta.

Tal não podia falhar no texto publicado no PÚBLICO no passado dia 31 de Agosto de 2008, que a seguir se transcreve:



Adeus a Luciana

Eduardo Lourenço - 20080831

É grato devolver à grande lusitanista a dádiva da sua companhia e da sua erudição sem falhaHá professores que são ao mesmo tempo autênticos actores. Luciana Stegagno Picchio, musa cultural dos dois mundos que dividem a nossa língua, pertencia a essa raça. As suas intervenções nos múltiplos colóquios dos dois lados do Atlântico eram sempre um espectáculo de saber, de graça e de elegância. Partilhava esse talento com a amiga Cleonice Berardinelli, sapiente como ela, menos exuberante. À professora Luciana deve o Brasil uma já clássica História da Literatura, em tudo digna da grande filóloga e crítica literária que era. Quanto a Portugal, deve-lhe uma História do nosso teatro a todos os títulos comparável aos seus estudos dedicados ao Brasil.

Para muitos de nós, Luciana impôs-se-nos como uma das primeiras estudiosas estrangeiras de Pessoa, num momento em que o fenómeno heteronímico era ainda objecto de polémica, discussão e fascínio. Distanciada das nossas querelas domésticas, a grande filóloga italiana pôde abordar a questão com mais frieza e humor. É um dos estudos mais pertinentes que o Pessoa de há meio século mereceu. Mais tarde, um pequeno estudo sobre o mesmo Pessoa, de parceria com Roman Jakobson, deu-lhe uma notoriedade internacional. Antonio Tabucchi, seu estudante, compartilhou com ela a paixão por Pessoa, a quem dedicou, em italiano, uma antologia até hoje não superada. E com essa paixão uma intimidade cultural com as coisas portuguesas que marcará para sempre a sua original obra de ficcionista.

Grande conhecedora da literatura italiana, naturalmente, algumas vezes Luciana lamentou não ter dedicado aos seus autores famosos, de Dante a Leopardi ou de Pasolini a Primo Levi a paciente atenção que consagrou aos Gil Vicente, aos Camões ou aos Murilo Mendes e à língua portuguesa que ilustraram. O interesse pelas culturas alheias é sempre uma forma de exílio. Penso que o seu foi exaltante. O Brasil, mais ainda do que Portugal, foi, em sentido literal, um novo mundo para ela. Um novo mundo que a adoptou como criadora sua, e de algum modo a integrou na sua fabulosa cultura de matriz europeia e emigrante. Isso a compensou e consolou de não ter dado à pátria de Dante, que seu pai lhe ensinara a recitar na adolescência, aquele fervor que durante anos, num magistério frutuoso, iria reservar para uma outra língua. A nossa, como a sua, filha do Lácio.

Em tempos era corrente queixarmo-nos da imaginária falta de atenção dos outros pela realidade e excelência das nossas criações. O que devia espantar-nos é a extraordinária atenção que a nossa cultura mereceu a tanto estrangeiro que tantas vezes nos descobriu, estudou e nos revelou a nós mesmos. Luciana Stegagno Picchio pertence a esses peregrinos que, com saber e alegria, se perderam nos labirintos culturais de um país europeu que há um milénio partilha com culturas tão ricas e brilhantes como a da pátria de Luciana os mesmos sonhos. Na hora de os abandonar a um outro destino, é grato devolver a Luciana a companhia, a presença da sua erudição sem falha, nunca austera, secretamente divertida, com que ao longo dos anos percorreu e iluminou alguns dos mais obscuros rincões da nossa Cultura.

Vilamoura, 29 de Agosto de 2008